Por WALCYR CARRASCO
Para a revista Época
O
amor necessário deveria resistir ao contingente.
Antigamente, talvez houvesse mais sabedoria
Antigamente, talvez houvesse mais sabedoria
Todos temos inveja dos casais de
antigamente. Do tipo que foram meus pais, juntos por mais de 40 anos. Ou, como
se diz no altar, “até que a morte os separe”. Sim, ainda existem casais que
passam suas vidas juntos. Mas também é fato que hoje a separação se tornou
fácil, rápida. Viver com alguém é aceitar ser transformado pelo outro e, por
sua vez, transformar. Há quem diga que casais de velhos que passaram a vida
juntos se tornam parecidos fisicamente. É verdade.
Separar-se é tão comum que, quando encontro
um amigo numa festa, tenho medo de perguntar:
– Como vai a Lúcia?
Pela sua expressão, já sei que dei um fora.
A mulher que chega com uma bebida (poderia ser prima, amiga, mas não é) me
encara com hostilidade.
– A gente se separou, mas ela está bem.
Conhece a Jô?
Fica um clima horroroso. O pior: quem passa
por mal-educado sou eu. Deveria saber que as pessoas se separam, encontram
novos amores. Mas como fazer? Às vezes é tão rápido e surpreendente! Se a
pessoa continua casada e a gente não pergunta da parceira, aí, sim, é doutorado
em falta de polidez. Depois de várias situações constrangedoras, aprendi a
ficar tateando:
– E a vida, como vai?
Para ver se o amigo dá uma pista.
A vida dos casais de antigamente nem sempre
era tão boa assim, principalmente para as mulheres. Sem profissão, eram
obrigadas a suportar maridos autoritários, casamentos fracassados. A entrada no
mercado de trabalho tornou a dignidade feminina possível também na vida íntima.
Se está com alguém, é porque quer. Ao lado disso, penso que vivemos numa época
em que se confunde o amor necessário com o contingente. O amor necessário,
segundo o filósofo francês Jean-Paul Sartre, é aquele que organiza a vida. Que
estabelece alicerces. É o que nos leva, enfim, a uma vida a dois, na expressão
mais comum. O contingente é a paixonite, o interesse, a amizade súbita que pode
arrastar alguém para a cama alheia, sem que isso signifique um compromisso. O
que chamo de amor contingente ganha o nome de traição.
Um amor necessário tem de resistir a uma
traição, penso. Mas a maioria das pessoas tem horror só da palavra –traição. No
passado, vamos combinar, era mais simples. Maridos traíam. Mulheres se
conformavam. Ou, na iminência de ser descobertos, maridos piravam. Tive um
colega de infância cujo pai teve um caso com uma prostituta. Ela descobriu o
endereço da família e ameaçava contar para a mulher. Fez chantagem. Ele perdeu
o que tinha, para a mulher – o amor necessário – não saber. Quando soube, foi
pior: a traída descobriu também que a grana tinha sumido e aí, sim,
literalmente, a casa caiu. Mulheres também traíam, claro. A figura da mulher em
busca de uma grande paixão rendeu um dos maiores romances da literatura, Madame
Bovary, de Flaubert. Não à toa, ela leva a família à falência e termina se
suicidando com arsênico.
Atualmente, a traição é motivo de briga,
escândalo, separação. Como no caso do famoso cantor sertanejo que teve um filho
fora do casamento com uma socialite. A mulher se separou, mas sem alarde, até
para não prejudicar a carreira do ex. Mas me pergunto. Ela fez bem? Penso que
não. Estavam juntos desde os tempos de pobreza. Tiveram filhos. Eram, um para o
outro, necessários. A outra foi contingente. Aconteceu, mas o cantor não ficou
com ela. Não era o amor de sua vida.
A escritora francesa Simone de Beauvoir e
Jean-Paul Sartre conheciam a diferença entre os dois tipos de amor – e se
permitiam ambos, coniventes. No livro A força da idade, Simone de Beauvoir
explica a visão de Sartre. “Trata-se de um amor necessário: convém que
conheçamos também amores contingentes”, diz ela. “Nossa compreensão duraria
tanto quanto nós mesmos, mas ela não poderia suprir as riquezas efêmeras dos
encontros com seres diferentes.”
É preciso sabedoria para saber quando
alguém veio para ficar. E também para quando é bom, mas passageiro. Talvez os
casais antigos lidassem melhor com os amores contingentes porque fingiam
ignorá-los. E a falsa inocência ajudasse a manter os casamentos. A clareza
psicológica dos relacionamentos atuais talvez pudesse ajudar noutro sentido:
entender que, muitas vezes, um dos parceiros precisa conhecer alguém, viver uma
paixão, para voltar renovado e reforçar os laços.
Quem é essencial só precisa saber aguardar.
Muitas vezes, é a traição que salva um casamento.
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